MP busca força na opinião publicada e no olhar de quem não conhece o processo
Talvez seja admirável — ou assustador, a depender da perspectiva do leitor — perceber como atualmente vem funcionando o Ministério Público Federal nos rumorosos e relevantes casos em que atua. Contudo, e infelizmente como afirmam alguns advogados, é mais plausível que a eficiência de suas ações institucionais ocorre mais por um aprimoramento em sua relação com a imprensa — e decorrente percepção ideológica por parte da opinião publicada — do que pelo aprimoramento de seus expedientes processuais propriamente ditos.
Essa nova e incrementada relação com a imprensa vem gerando seus lucros institucionais, numa espécie de jogo de abafa. Se a triste lição de Goebbels é extremamente atual em tempos de fake news — a mentira repetida à exaustão acaba por se tornar uma verdade —, disso vem sabendo tomar proveito o MPF, que lamentavelmente se utiliza disso em proveito institucional, como aos poucos vem se descortinando.
E dando as cartas nesse jogo, há pouco tempo mais um caso rumoroso recebeu indevida publicização, ganhando contornos midiáticos. No site da instituição, faz-se referência a um pedido feito pela PGR em um processo no qual há a possibilidade de um parlamentar passar a ter monitoramento eletrônico (assim também chamada a tornozeleira eletrônica) e ser obrigado a ficar em casa após as sessões legislativas, por supostamente ter pagado uma testemunha por seu depoimento[1].
Quem conhece de processo sabe que a acusação é grave. E esse conteúdo, inicialmente veiculado em sua própria página na internet, natural, rápida e posteriormente, foi replicado em vários veículos de imprensa. O prejuízo é sempre certo, e normalmente irreparável, para as pessoas mencionadas.
Mas quem conhece de processo também sabe que é necessário entender mais do que as acusações propriamente ditas, mas, sobretudo, a forma como elas são construídas. Mais importante do que “o que?” é o “como?”.
E assim, o que não replicaram os demais veículos de imprensa se encontra justamente no final da publicação da notícia, no site da PGR. Lá no finalzinho, assim como uma nota de rodapé, constou a íntegra do pedido da acusação. Exatamente aquilo que pouca gente tem curiosidade, mas que é capaz de fazer a diferença entre uma precipitada prisão arbitrária e uma legítima detenção provisória. No expediente, assinado pela própria procuradora-geral da República, verifica-se a hipótese:
1) A defesa pediu para que os assistentes técnicos da perícia (peritos particulares) prestassem declarações orais na audiência de instrução no processo, ocasião em que seriam ouvidas outras testemunhas;
2) Dois peritos particulares foram ouvidos nessa audiência como testemunhas, sendo que um deles afirmou ter uma empresa de perícias e reconheceu ter sido profissionalmente remunerado para fazer a análise profissional daquelas inseridas do caso concreto;
3) Com isso, o procurador designado para a audiência, naquele ato, afirmou que a palavra do referido perito particular não era idônea, por “absolutamente interessada na causa e, portanto, parcial (…) pessoa que confessadamente recebeu dinheiro para se preparar e participar daquele ato”.
Nesse contexto, ajuizou esse pedido de monitoramento eletrônico.
A um olhar leigo, a hipótese pode parecer grave. Já para quem conhece de processo — seja atuando pela defesa, pela acusação ou pelo Judiciário — sabe que não.
Ainda que disponha de regramento próprio[2], a intimação de assistentes técnicos (mais conhecidos por peritos particulares) para depor em audiência de instrução na qualidade de testemunhas é extremamente comum no dia a dia forense — ainda que alguns mais puristas possam exageradamente alegar relativa atecnia neste proceder. E, em um processo rotineiro, jamais chamaria atenção. E ainda que pudesse chamar a atenção do Ministério Público ou do próprio juiz da causa, existe a corriqueira possibilidade de fazer-lhe a contradita (procedimento amplamente conhecido aos acostumados a lidar diariamente com ações penais, previsto no artigo 214 do Código de Processo Penal), o que levaria este perito particular a ser ouvido na qualidade do que se costuma chamar de informante — e não enquanto testemunha —, relativizando-se o valor probatório de seu depoimento.
Como já se disse: quem conhece processo no dia a dia — e isso independentemente da posição do ator processual — sabe o quão corriqueiro e comum é essa situação. Há inúmeras referências não só na vivência forense do pão nosso de cada dia, mas na literatura especializada e nas decisões de nossos tribunais sobre a possibilidade desse proceder da defesa. E isso jamais assustaria advogados, promotores ou juízes, por mais que haja realmente diferença entre a posição processual de testemunha e assistente técnico.
Pior: também os que atuam em ações penais bem sabem que o juiz, ao sentenciar, deve interpretar adequadamente o teor daqueles depoimentos, dando-lhes o valor processual adequado — no caso, prova produzida por assistente técnico —, não havendo qualquer prejuízo na forma utilizada na oitiva ao final da ação penal. Então, a pergunta que fica é: por que tanto alarde por algo tão simples?
É legítimo e lícito à defesa contratar um profissional qualificado e remunerado — e que reconheceu essa circunstância em audiência, de forma absolutamente transparente — para apresentar questionamentos e críticas às perícias realizadas normalmente por agentes do Estado, o qual não tem, e jamais poderia, o monopólio da “verdade” na reconstrução dos fatos e nas interpretações de um processo judicial. A democracia aplicada ao processo penal aceita com naturalidade que a intenção da defesa, neste particular, é realmente desestabilizar a acusação — por mais que isso possa desestabilizar emocionalmente os mais essencialistas ou autoritários.
O que assusta, então, não é o ordinário, o comedimento e a discrição intrínsecos aos atos endoprocessuais, mas o extraordinário: assusta não somente a espetacularização dos processos, mas também a indevida busca por vulneração e criminalização do exercício da defesa — tentando em casos concretos amordaçar o que jamais conseguirão: a voz dos advogados.
Esse pouco sóbrio — quase histriônico — Ministério Público parece querer buscar uma perspectiva processual estéril, como se fosse possível produzir um standard decisório idiossincrático, sem a participação da defesa, sem referências de quem não conhece esse dia a dia de ritos e procedimentos, para assim alcançar os seus objetivos dentro do processo, nesse jogo de abafa, como se assim estivesse defendendo o seu papel institucional de guarda da ordem jurídica. Como se fosse possível que ao fiscal da lei fosse permitido não buscar meios para concretizar a missão constitucional do exercício da ampla defesa, mas, ao contrário, criminalizar e encurralar a advocacia — tão auxiliar da Justiça quanto o próprio Ministério Público.
Há uma quase lenda-urbana — Goebbels explica? — que jura de pés juntos que após a promulgação da Constituição da República de 1988 houve um diálogo entre o então ministro do STF Sepúlveda Pertence e o presidente Sarney, no qual se classificou o Ministério Público como um monstro institucional, enorme e sem controle. Pois agora, após vários equívocos judiciais acerca da interpretação bastante distorcida, que muito ampliou a extensão e alcance de sua autonomia institucional, parece que temos um Leviatã meio ébrio (por poder?) e cada vez mais desgovernado, lamentavelmente buscando força na opinião publicada e no olhar de quem não conhece o processo, jogando assim as questões judiciais para a apreciação cada vez mais irascível da arquibancada, transformando este jogo de abafa em um populismo penal admirável — ou assustador, a depender da perspectiva do leitor.
[1] http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-pede-recolhimento-domiciliar-e-monitoramento-eletronico-de-deputado-eduardo-da-fonte.
[2] Art. 159. (…) §5º. Durante o
curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: (…) II –
indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser
fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência.
Fonte: Conjur
Thiago Brügger da Bouza é advogado, especialista em Direito Penal e Processual Penal, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e professor de Processo Penal em Brasília.