Investida contra a advocacia quer esvaziar o direito de defesa

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Por Fernanda Valente e Márcio Chaer

Começou com a criminalização da política e dos políticos. Emendou na criminalização do alto empresariado e dos administradores públicos — juízes, inclusive. Na escalada contra o direito de defesa, faltava debilitar e desmoralizar um personagem chave: o advogado. 

A máxima jurídica de que “todos são inocentes até que se prove o contrário” caiu em desuso. E os motivos são os mais diversos. Advogados ouvidos pela ConJur analisam a investida contra a advocacia.

Em tempos de absoluta depuração, os profissionais citam algumas medidas focada em dificultar o acesso à defesa e, como consequência, mitigar a presunção de inocência. Dentre elas restrições ao Habeas Corpus; diminuição de recursos; buscas e apreensões em escritórios; e quebra de sigilo bancário de escritórios. 

Soma-se ainda o aproveitamento de prova obtida por meio ilícito e projetos de lei que querem que obrigar os advogados a provar a origem lícita dos honorários recebidos. 

Como efeito colateral, a criminalização dá suporte para o avanço do autoritarismo do Estado e a advocacia deve ser a última trincheira, frisa o jurista Lenio Streck.

“A batalha final. Kill all the Lawyers (matem todos os advogados) disse o açougueiro Dick, na peça Henrique VI, de Shakespeare. Era a tentativa de golpe. Os advogados seriam os primeiros a serem eliminados. Por que os advogados são a última trincheira, ainda hoje? Porque a próxima vítima pode ser você. E quem irá defender você? Tiranos e advogados não combinam! Definitivamente!”

O criminalista Alberto Zacharias Toron explica que a expressão “criminalização da advocacia” trata da “intimidação do advogado que incomoda a atuação repressiva”. 

“Há coisas mais bizarras como a identificação do trabalho do advogado com a prática de obstrução de justiça. Até mesmo manifestações nos autos e lançadas na discussão da causa, em defesa do réu ou investigado, são tomadas como criminosas. A imunidade constitucional cede passo ao furor punitivo”, critica.

O advogado Pierpaolo Cruz Bottini aponta ainda que o Habeas Corpus e o advogado “são os alvos preferenciais daqueles que veem a democracia e o pluralismo como um obstáculo a suas pretensões autoritárias”. O direito de defesa, diz, “sempre incomodou os defensores do pensamento único. A criminalização da profissão é o corolário da estratégia de inibição da contestação e da defesa”.

Mundos e fundos
Desde que a sociedade passou a exigir do Estado seus direitos e cobrar ações efetivas contra a criminalidade, outro resultado foi o entendimento de que a impunidade é produto apenas da morosidade da Justiça. Com isso, passou-se também a confundir a figura do cliente com o advogado.

“O senso comum do ódio, que contaminou a sociedade, tem direcionado ao direito de defesa as suas baterias. A advocacia acaba compreendida como um obstáculo à sanção (como se a reprimenda fosse a única forma válida de justiça) e, justamente por isso, recebe ataques”, afirma o advogado Igor Tamasauskas.

A ideia, diz o advogado Walfrido Warde, é que a advocacia seja a “manejadora das garantias e dos direitos individuais”, mas há uma articulação para convencer a sociedade civil de que os “direitos são aliados da impunidade”. “Esse projeto autoritário malogrará”, acredita.

O tributarista Igor Mauler Santiago afirma que o objetivo é “vedar a irresignação do cidadão e deixar sem defesa aqueles que se quer condenar”. 

Ainda que o cenário atual seja de busca pela culpa, apontar o dedo é seletivo quando envolve o próprio indivíduo ou alguém do seu convívio. “Esse ódio é hipócrita, os ataques cessam imediatamente quando a injustiça é cometida contra alguém próximo aos julgadores ‘ad hoc’ das redes sociais. Aí, compreendem a importância e a nobreza do papel do advogado”, reforça Tamasauskas.

No mesmo sentido, o advogado Marco Aurélio Carvalho afirma que as tentativas reiteradas de criminalizar a advocacia, somadas as investidas contra o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, “são ataques diretos ao Estado de Direito e à própria Democracia” e devem ser combatidos.

Defesa do direito de defesa
“Por seu papel de instrumentalizar o direito de defesa, a advocacia é atacada, colocando-a sob suspeição perante a opinião pública, buscando confundir seu relevante papel, fazendo crer que seja de cumplicidade com o crime, e não, como a própria Constituição afirma, de ser função indispensável à própria administração da Justiça”, diz o ex-presidente da OAB de São Paulo, Marcos da Costa.

Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP e cofundadora da AJD, acredita que ataques ao exercício da advocacia se inserem em um contexto maior, de tentativas de enfraquecimento da própria democracia. “Em verdade, quando atacam a advocacia e tentam criminaliza-la, na acepção genérica do termo, estão a agredir o sistema de justiça desenhado na nossa Constituição Federal, pois advogados são os primeiros garantes da ordem democrática e têm o dever de defesa de princípios nela contidos.”

O ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, diz que a classe é agredida sempre que projetos de poder autoritário buscam se instalar. “Na França na época do terror de Robespierre chegou-se a fechar a ‘OAB’ de Paris. Os advogados são contestadores por essência e isso não se coaduna com totalitarismos de qualquer ordem”, afirma.

A resposta, segundo Furtado, será a derrubada do veto presidencial na lei de abuso de autoridade, “especialmente no item que torna crime a violação as prerrogativas do advogado”. A medida está em discussão e foi alvo de críticas de entidades de classe como a OAB e IAB.

“O advogado é o inimigo número 1 do arbítrios e do capricho estatal”, diz o criminalista Fábio Tofic Simantob, apontando que isso acontece em diversas épocas e lugares, “quando a tirania triunfou, advogados denunciaram o arbítrio colocando em risco a própria vida”.

“No auge do terror jacobino os advogados iniciavam suas defesas perante a convenção dizendo: ‘trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda mas só depois de ouvir a primeira’. Mas a história da advocacia é a história da coragem em denunciar abusos”, exemplifica.

É o que o criminalista Leonardo Yarochewsky chamou de “tempos sombrios”. Para ele, sem advocacia não há Justiça, quiçá democracia. Alertando para a criminalização dos advogados criminais, ele afirma que não se pode “curvar e nem ceder um milímetro que seja na defesa das prerrogativas profissionais. Não podemos nos calar diante do avanço do estado penal e do autoritarismo”.