Prerrogativas profissionais do advogado e a nova lei de abuso de autoridade

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Por Fernando Capez e Hans Robert

O art. 133 da CF determina ser o advogado indispensável à administração da justiça e inviolável no exercício de sua profissão, nos limites da legalidade. Diferentemente das demais profissões, existem quarenta e duas referências a advocacia no texto da Carta Magna, justamente por se tratar de função essencial à prestação jurisdicional e cujo exercício deve ser garantido mediante prerrogativas, necessárias à defesa de direitos e garantias fundamentais do cidadão.

O advogado atuante e combativo não defende apenas o seu cliente, mas o princípio de que ninguém será privado de liberdade, amesquinhado em seu patrimônio ou aviltado em sua honra e decoro, sem estrita obediência aos princípios derivados do Estado Democrático de Direito. Sem a presença do advogado, o Estado se transformaria em um Leviatã acusatório, no qual a tese da acusação não encontraria a antítese da defesa, inviabilizando a síntese de um pronunciamento jurisdicional sereno, equidistante, equilibrado e portanto, justo. Sem advogado não se faz Justiça. E sem prerrogativas, não existe advocacia eficaz. Assume, portanto, contornos de missão constitucional e integra de forma indissolúvel a função estatal de distribuição de justiça.

Como afirmava MANOEL PEDRO PIMENTEL: “O advogado tem que ter a coragem de um leão, a brandura de um cordeiro, a altivez de um príncipe, a humildade de um escravo, a fugacidade de um relâmpago, a persistência do pingo d´água, rigidez de um carvalho, flexibilidade de um bambu“.

Histórico dos tipos penais
A antiga Lei 4.898/65 criminalizava de forma imprecisa a violação ao exercício profissional, empregando a elementar genérica “qualquer atentado”, vulnerando a reserva legal (CF, art. 5º, XXXIX). Além de sua técnica sofrível, suas penas iníquas eram quase um estímulo ao abuso (detenção de 10 dias a 6 meses e multa), e talvez por isso, sua inconstitucionalidade tenha sido ignorada. Inconstitucional, porém ineficaz. Legislação simbólica e promocional. Por essa razão, em boa hora foi aprovada a lei 13.869/2019, a qual introduziu no Direito Penal, as figuras típicas previstas nos artigos 20, 32 e 43, todos da Lei nº 13.869/19, tutelando a atuação do advogado e suas prerrogativas e, por conseguinte, a defesa de direitos fundamentais.

Impedimento de entrevista pessoal e reservada do preso com advogado
O art. 20 da nova Lei assim dispõe: “Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência”.

A entrevista pessoal e reservada entre advogado e preso decorre diretamente da dignidade humana (CF, art. 1º, III) e devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV), com previsão na lei processual (CPP, art. 185 §5º) e Estatuto da OAB (art. 7º, inciso III da Lei nº 8.906/94). O art. 21 do CPP (incomunicabilidade do preso) não foi recepcionado pela Constituição, pois, se a incomunicabilidade é vedada até mesmo para os casos de estado de defesa ou sítio (CF. art. 136, §3º, inciso IV), com maior razão em ambiente de normalidade institucional. Salvo hipóteses excepcionais impostas pela necessidade de preservação da ordem pública e paz social, nem mesmo poderá ser imposta durante o regime disciplinar diferenciado (STJ, REsp. 1028847-SP , 2ª Turma, relator Min. Herman Benjamin, j REsp. 1028847-SP, DJU 21.ago.2009).

O núcleo do tipo consiste em impedir, ou seja, interromper, obstaculizar, obstruir, perturbar. Pode ser praticado por qualquer agente público, como por exemplo o diretor do presídio. O elemento normativo “sem justa causa”, torna a conduta atípica quando houver justificativa legal para a restrição. O parágrafo único pune a conduta daquele que impedir o defensor, por um período razoável, de reservadamente conversar com o acusado, investigado, indiciado ou preso antes do seu interrogatório. A captação ambiental e/ou gravação da conversa também configura a conduta típica. O novo crime prevalece sobre a conduta mais genérica do art. 43 da mesma lei c.c. o art. 7º, inciso III do Estatuto da OAB, em virtude do princípio da especialidade.

Negativa de acesso aos autos da investigação preliminar
O art. 32 traz a seguinte redação: “Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.

É prerrogativa profissional do advogado o acesso amplo a qualquer modalidade de investigação preliminar, conforme o art. 7º, inciso XIV da Lei nº 8.906/94. A Súmula Vinculante nº 14 do STF garante o acesso amplo aos elementos de informação já documentos nos autos de investigação preliminar: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

A conduta típica de negar o acesso aos autos pode ser praticada no âmbito de qualquer modalidade de investigação: inquérito policial (artigos 4º a 23 do CPP e Lei nº 12.830/13); o procedimento investigatório criminal do Ministério Público (Resolução nº 181/17, do CNMP); Comissão Parlamentar de Inquérito (art. 58 §3º da CF, c/c., Lei nº 1.579/52); inquéritos de natureza judicial (vide art. 33, parágrafo único da Lei Complementar nº 35/79, c/c., art. 43 do RISTF); o inquérito policial militar (vide artigos 9º a 28 do Decreto-Lei nº 1.002/69, o CPPM), bem como o acesso ao termo circunstanciado nos casos envolvendo infração penal de menor potencial ofensivo (vide art. 69 da Lei nº 9.099/95).

O sujeito ativo pode ser qualquer uma das autoridades que presidam esses procedimentos investigatórios (autoridade policial; membro do Ministério Público; magistrados, autoridade militar etc.), bem como eventuais serventuários e demais agentes públicos, como escrivão de polícia, que tiverem o controle dos autos no âmbito administrativo.

Além da conduta de negar acesso aos autos da investigação preliminar, o tipo penal pune a conduta de impedir a obtenção de cópias ou fotocópias, por exemplo fornecendo autos incompletos, de modo a obstaculizar o direito de defesa (vide art. 7º §12 do Estatuto da OAB). O tipo não se refere a peças de diligências ainda em curso ou futuras, cujo sigilo seja necessário, como a interceptação de comunicação telefônica em andamento (Lei nº 9.296/96, art. 8º). Nesse sentido, o art. 7º §11 do Estatuto da OAB.

Violação de prerrogativas
O art. 43 incluiu o art. 7º-B na Lei nº 8.906/94, que passará a vigorar com a seguinte redação: “Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”. Alcança a violação da inviolabilidade do escritório, instrumentos de trabalho, correspondências relativas ao exercício da advocacia, comunicação com seu cliente reservadamente, mesmo sem procuração, a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, e de não ser recolhido preso, antes do trânsito em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar.

O legislador ao criar esse “novo” tipo penal e revogar a antiga Lei de Abuso de Autoridade, gerou hipóteses de abolitio criminis (art. 5º, incisos XL da CF, c/c., art. 2º e art. 107, inciso III, ambos do CP), haja vista que o art. 3º, alínea “j” da Antiga Lei de Abuso de Autoridade considerava típica qualquer violação às prerrogativas dos advogados, o que abarcava todos os incisos do art. 7º da Lei nº 8.906/94, contudo, com a Nova Lei, somente as violações aos direitos dos advogados dos incisos II, III, IV e V do art. 7º da Lei n. 8.906/94, serão consideradas delituosas.

Ademais, a redação do tipo penal é muito imprecisa. KARL BINDING, em sua “Teoria da Norma”, estabeleceu a diferença entre lei e norma[1]. A lei descreve, enquanto a norma proíbe. Quem efetua disparos e tira a vida da vítima, age de acordo com a descrição do homicídio (“matar alguém”). A norma como mandamento de conduta normal, apenas se limita a dizer: “não matar” (cf. ZAFFARONI[2]). O tipo penal deve descrever exatamente a conduta ameaçada de pena, para que o cidadão saiba especificamente o que é proibido[3]. Como ensina WINFRIED HASSEMER: “A lex certa, a lei efetivamente segura, é a esperança natural de qualquer legislador de que com o seu pronunciamento conseguirá impor determinados efeitos dentro de uma comunidade jurídica”[4].


[1] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 156 e ss.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro/volume I, parte geral. 10.ed. São Paulo: Editora RT, 2013, p. 281.

[3] Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal: Parte General. Traducción e notas Diego-Manuel Luzón Pena; Miguel Díaz y Garcia Conlledo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 277.

[4] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 335.

Fonte: Portal Conjur