Polícia e MP não devem dar entrevistas e divulgar delações durante investigações

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Por Sérgio Rodas e Lilian Matsuura

Delegados de polícia e integrantes do Ministério Público não deveriam dar entrevistas coletivas enquanto buscas e apreensões ainda estiverem ocorrendo. Isso porque as declarações de autoridades ajudam os investigados a esconder documentos relevantes para as apurações. Da mesma forma e para evitar julgamentos precoces, anexos de acordos de delação premiada só devem ser divulgados após o recebimento da denúncia. Essa é a opinião de profissionais do Direito que compareceram ao lançamento do Anuário da Justiça Rio de Janeiro 2019, ocorrido nesta quarta-feira (17/4).

A Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) estabelece que o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia. Porém, essa regra é constantemente desrespeitada. Um exemplo está na recente divulgação de depoimento no qual o empreiteiro Marcelo Odebrecht cita o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.

O documento estava num processo em trâmite na 13ª Vara Federal de Curitiba, onde corre a “lava jato”, mas, como houve menção a Toffoli, que tem prerrogativa de foro no STF, foi enviado à PGR. Antes disso, porém, foi repassado ao site O Antagonista e à revista Crusoé, que noticiaram a delação de Odebrecht. Na segunda (15/4), o ministro Alexandre de Moraes determinou que os veículos retirassem do ar textos que associam, indevidamente, o presidente do Supremo à empreiteira, e nesta quinta-feira (17/4) voltou a permitir a publicação.

O ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio Saldanha Palheiro critica a divulgação de delações antes do recebimento da denúncia. “É um absurdo, que acaba afetando o Estado Democrático de Direito, a democracia, a igualdade entre as partes e o próprio Direito”.

O criminalista Técio Lins e Silva, ex-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, diz que “deveria haver um cuidado mais republicano com os investigados, e não essa espetacularização”. “Na verdade, o que se faz hoje é circo. Para acabar com a curiosidade do povo, oferecem pão e circo”, ataca.

A delação premiada não é prova, e sim um meio de obtenção de prova, ressalta a advogada Maíra Fernandes, vice-presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim-RJ). Dessa forma, ela considera “muito danosa” a divulgação de anexos de delações. Até porque, aponta, esses documentos nunca são publicados na íntegra, mas “de forma seletiva, fora do contexto, ressaltando frases de efeito e que, na maior partes das vezes, apenas prejudicam as investigações e não levam em conta a presunção de inocência”.

Já o desembargador aposentado do TJ-RJ Adilson Macabu, que já foi convocado para o Superior Tribunal de Justiça e atualmente é advogado, opina que não só as delações não poderiam ser divulgadas como não se deveria premiar o colaborador sem um exame das provas que apresentou. Caso contrário, há violação do princípio da paridade de armas.

Ainda que, posteriormente, fique demonstrado que a delação premiada não está fundamentada em nenhuma outra prova, a divulgação de seus anexos gera um dano gravíssimo ao acusado, ressalta o desembargador do TJ-RJ Luciano Saboia Rinaldi de Carvalho. E esse dano talvez seja permanente, destaca, pois o citado sempre ficará com a pecha de ser “aquele sujeito que uma vez foi mencionado por envolvimento com corrupção”.

Para preservar a esfera de individualidade dos investigados, o 1º vice-presidente do TJ-RJ, desembargador Reinaldo Pinto Alberto Filho, e o desembargador do TJ-RJ César Felipe Cury defendem que documentos sigilosos não sejam divulgados em nenhuma hipótese. Entretanto, eles são favoráveis a que órgãos públicos prestem contas de suas atividades à sociedade em todos os demais casos.

Excessos estão sendo cometidos, pontua o presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), Carlos José Santos da Silva, o Cajé. Em nome da reputação social dos acusados, ele defende que haja bom senso na divulgação de informações por delegados e membros do MP.

Já o desembargador Siro Darlan é contra não só a divulgação das delações, mas ao instituto em si. “A delação premiada é o prêmio ao traidor. Joaquim Silvério dos Reis [um dos delatores dos inconfidentes mineiros] é o nosso traidor mor e hoje ele é o patrono da delação premiada. As pessoas estão achando que a investigação, por absoluta falta de competência das autoridades responsáveis pela investigação, estão hoje prendendo para torturar e para delatar. Isso tudo é muito lamentável e eu não gostaria de estar vivendo esse tempo porque já vivi os tempos de ditadura e sei muito bem o que é uma pessoa ser torturada”.

Investigações prejudicadas
Advogados e magistrados presentes no lançamento do Anuário da Justiça Rio 2019 também defenderam a proibição de entrevistas coletivas de delegados de polícia e integrantes do MP enquanto buscas e apreensões ainda estão sendo promovidas.

“Não podem ser concedidas informações sobre a investigação enquanto estiver em curso. É um absurdo e fere todo o sistema acusatório, que o Ministério Público tanto defende; fere o sigilo, que é legalmente protegido; e é mero fruto da vaidade daqueles que se propõem a ter esse tipo de atuação. A imprensa pode ter acesso aos dados que não estão sob sigilo, claro. Deve ter amplo acesso. Mas não a informações em sigilo”, afirma Antonio Saldanha.

Adilson Macabu diz que as autoridades deveriam ser proibidas de dar entrevistas. Afinal, o processo tem várias fases, e os suspeitos podem ser absolvidos. Porém, se a polícia e o MP divulgam as acusações logo no começo, já há uma “condenação pública” dos investigados, destaca. O advogado lembra que a honra é um direito fundamental, e não pode ser desvalorizada em prol da liberdade de expressão e informação.

Se levarmos em conta o que está escrito na Constituição, o direito à privacidade, o respeito ao sigilo, as entrevistas de autoridades são um abuso de direito, avalia Siro Darlan. No entanto, no Brasil atual, onde “a Constituição está rasgada”, o Estado tornou-se policialesco, e o punitivismo está imperando, a prática transformou-se em algo natural, lamenta o desembargador.

“Nós não estamos vivendo em um Estado Democrático de Direito. Estamos num Estado Pós-Democrático. Temos que, efetivamente, lamentar que esses fatos estejam acontecendo depois de tantos avanços democráticos e depois de havermos vencido 25 anos de ditadura. Estamos voltando a ela e, infelizmente, sob o aval do Poder Judiciário.”

Nessa mesma linha, Técio Lins e Silva analisa que a “espetacularização” da Justiça Criminal gera danos à imagem dos que são acusados precocemente na imprensa.

“Esse é um mau hábito, difundido pela República de Curitiba, que é vazar informação, dar publicidade a assuntos que são seríssimos e que deveriam ser guardados. Hoje virou moda fazer a operação e levar a imprensa junto, chamar a televisão. Estou cansado de ver notícia em que a televisão mostra a chegada da polícia. Ou seja, eles estão lá antes. Isso é um escândalo filmar a pessoa que está submetida à investigação. Se depois não der em nada, ou mesmo que dê, não importante, daquele momento em diante a pessoa está submetida a um constrangimento, a família, os vizinhos, o bullying no colégio. Não há nada que justifique essa espetacularização da repressão criminal, da Justiça Criminal.”

A criminalista Maíra Fernandes pondera que não se deve proibir todas as entrevistas, pois, em alguns casos, é importante que as autoridades prestem esclarecimentos o quanto antes. Porém, ela declara que delegados e integrantes do MP devem ter mais cuidado na divulgação de informações.

“Deve-se ponderar o interesse coletivo das informações, a importância do sigilo para o sucesso das investigações e a presunção de inocência. Afinal, a divulgação de acusações pode induzir à formação da ideia de que uma pessoa é responsável pelo crime quando não é. E isso pode induzir o julgamento dos magistrados, pressionados pela opinião pública.”

O diretor do IAB André L. M. Marques tem visão semelhante. Segundo ele, as entrevistas coletivas de delegados e membros do MP passam à população a mensagem de que já há uma condenação fixada. E essas informações reverberam com muita rapidez nas redes sociais – ao contrário do que ocorre quando o sujeito é absolvido posteriormente, ressalta.

Ainda assim, o advogado acredita que as entrevistas não atrapalham as investigações. Se a polícia e o MP divulgam informações, destaca, é porque já concluíram as investigações relacionadas a elas.

Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Lilian Matsuura é repórter da revista Consultor Jurídico.

Fonte: Conjur